sábado, 4 de março de 2017

A Quaresma e o Carnaval

Não é meu habito postar prosa. Mas abro uma excepção.
O Carnaval já lá vai.... E, de tão triste que ele foi, na minha cidade, vieram-me à memória os carnavais da minha juventude. 
Aqui fica o texto.



O CARNAVAL E A QUARESMA 

Rigorosamente, segundo Bula Papal datada do ano 350 da Era Cristã, o período da Quaresma começa logo a seguir ao Carnaval, um segundo depois da meia-noite de Terça-Feira de Entrudo.
Mas, para a maior parte dos habitantes da pequena cidade, a determinação do papa Júlio I foi, há muito, relegada para o esquecimento.
Nesse tempo, os padres bem podiam vestir a paramenta roxa da quadra religiosa, mas ela não teria um verdadeiro sentido enquanto não se escoassem os restos festivos da festa pagã do corpo. E isso já era Quaresma adentro.
E foi assim que, naquele Entrudo de há cinquenta anos, o último baile daquela quadra carnavalesca, haveria de durar até já bem depois do nascer do sol! Aliás, como era costume naquela Sociedade Recreativa – a mais castiça, a mais genuína da cidade – o Marítimo!
À meia-noite – e certamente não para anunciar o princípio da abstinência, recolhimento e oração –, as luzes da sociedade apagaram-se e acenderam-se três vezes. Era sim, para a saída das "máscaras", ou seja, daquelas e daqueles que sem ser sócios do club, tinham acesso à sala de baile, desde que mascarados!
A partir daí, só era permitida a presença dos sócios e tudo teria a cara a descoberto, para a continuação da festança,
A porta de entrada foi fechada. Não era para ninguém entrar, mas sim, para ninguém sair! As janelas, essas, tinham as gelosias corridas… muito provavelmente para esconder a claridade do sol, quando ele viesse a nascer.
O conjunto "Os Merry Boys", muito popular na época, encetou a parte final do baile, com marchas, slows e tangos, tão do agrado dos mais velhos, já com a perna cansada.
E a cada nova série, os mancebos iam buscar as moças que se encontravam disponíveis.
Depois havia de tudo: o puro prazer da dança, ou as promessas de amor, a volúpia disfarçada e a luxúria possível, a coberto do tango ou dos slows, sob o olhar atento das mães e avós que se sentavam ao redor do recinto, não haver por ali algum desmando…
A noite avançava sem ninguém dar por isso. Percebia-se, sim, o cansaço que se via nos rostos, e a humidade que pairava no ar e se condensava nas vidraças, misturada com o aroma ácido do bom azeite desses tempos, que fritava postas de moreia, no bufete. Os homens tinham posto de lado o casaco e aberto o colarinho da inevitável gravata. As camisas colavam-se ao suor dos corpos. Os  únicos que não resistiram à hora tardia e ao cansaço, foram as crianças de tenra idade que dormiam profundamente no colo das mães ou avós.
Eram quase seis da manhã, quando começou o "baile mandado", mandado a preceito por um mandador de ocasião, que ensaiou as primeiras quadras, ao som da música, que começava a tornar-se frenética!

"Dá-lhe um toque mais acima
dá-lhe um toque mais abaixo,
dá-me a tua pintassilga
pra brincar com o meu cartaxo! "

E outras de idêntico sentido brejeiro e popular.
E foi então que alguém gritou:
 – O corridinho!... Vai tudo dançar o corridinho!
Mesmo as velhas saltaram dos lugares e algumas foram buscar os já meio-bêbados maridos que bebiam copos de vinho tinto e medronhos, no bufete!
Na sala de baile, os pares rodopiavam, ensaiando os passos e as correduras e "escovinhas" próprias da tradição e dos floreados do acordéon. Multiplicavam-se os encontrões e as pisadelas dos menos lestos, ou embriagados. A água de condensação começou a cair do tecto, em grossas gotas. Mas a pura alegria voltava aqueles rostos cansados. Festa é festa! Ninguém arredava pé.
Por fim, ao fim dum tempo, os pares foram rareando, esgotadas as forças dos mais velhos. Mas os resistentes não davam mostras de abrandar e muito menos desistir.
Até que, umas boas duas horas depois, o presidente da colectividade subiu ao palco, mal podendo respirar, escorrendo pingado, e anunciou em voz grave, mas contrafeita e entristecida
Prezados consócios. Com muita pena nossa, o baile tem de terminar. São quase nove e meia da manhã!...
E rematou, ofegante, suado até à medula:
Mai logo há matinè… as quatro da tarde!...

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