domingo, 4 de dezembro de 2011

AS CASAS

AS CASAS
..
Na cidade resvalamos pela lâmina dos dias
o contorno dos passeios antigos, as inscrições
do vento encurralado nos umbrais do tempo.
.
Aqui tecemos a teia da luz e da sombra
volúvel, da nossa obediência ao sol,
ao claro/escuro ágil clivagem duma nuvem,
ou a cirros de sono no lilás da tarde:
.
transitórios de corpos que são os nossos, hábeis
passageiros, limpos insectos de lábios trans-
lúcidos colados aos vitrais reflectidos para dentro,
onde roçam vestígios de amores idos
rasgados em sangue e esperma – versão a mais antiga
da pólvora/seta a mais veloz da ave –,
submersos de pequenas minúsculas aranhas voando
ao indelével vento dum fio de seda,
a bafejar a pele do corpo antiquíssimo
desde o fumo mais imemorial
de todos os segredos da vida
.
trazidos no eco dos frutos do pólen que veio
de ainda além das montanhas e do mar,
talvez de ainda além donde as estrelas
disparam a cinza cadente na noite acesa
de luz e poeira
com que amassamos os olhos terríveis
dos deuses.
.
Aqui, na cidade, nos multiplicamos de sede e náusea/
de amor e raiva,
no vaivém multicolor bocejo e riso da sombra e luz.
Aqui, sobre o veio da terra,
o ouvido encostado ao polo do seu eixo,
aqui talhámos aparelhámos as nossas pedras,
pedra a pedra,
pedra sobre pedra,
até à configuração solene duma casa.
.
E nós mesmos as construímos com as nossas mãos
a régua de cálculo, o prumo, esta forma erecta
e obsessiva
que temos
de nos afirmarmos perante nós mesmos e os outros,
esta forma que temos de desafiar a nossa unipresente
presença e imagem,
única, temporal, para sempre presente do que fomos.
.
Nós mesmos as construímos com as nossas mãos
e no entanto,
moldámos de arestas as pedras luminescentes,
planos, cubos, rectas paralelas, arcos estilizados,
colunas gregas,
para iludir o cansaço visual da forma
normal do corpo
onde provisoriamente habitamos,
habituados que estamos a habitar uma casa.

Nós mesmos as construímos com as nossas mãos
pedra a pedra, século a século,
e nelas gravámos os dias
ao feitio das páginas da chuva
a gotejar a chuva, vinda de cima para baixo,
do céu para a terra, onde plantámos pedra a pedra
as nossas casas.
.
E elas aí estão, humílimas e graves, vestidas de cal
e de salitre preclaro e efémero.
.
Habitaremos o seu refúgio, a penumbra amável
dos seus tectos
o espaço circunscrito dos familiares objectos
o teu corpo de mulher
grávida das noites de frio e cio.
.
Por aqui passamos passando vagabundeando os dias
ao encontro do acaso das ruas, do amigo de ocasião,
tremendo a luz no ocaso da sombra e frio.
.
Às vezes, na cidade, reconhecemo-nos nos outros
comungamos das suas alegrias mais triviais,
perpassamos pelas ruas rente às casas bailarinas
veladas de brancura e negro no estio da tarde;
.
às vezes topamos o torrão da terra
de como quem desce à vida imaginada
subitamente serena de açucenas pregadas sob a tarde
de perfil;
.
às vezes detemo-nos de exílio no próprio movimento
imaginário de partir,
chegando sempre ao mesmo sítio exactíssimo de exílio.
.
E voltamos de pétalas depois vestidos e marfim
nos olhos murmurando os amigos
os lugares
as coisas
e as casas que ficaram verticais vestidas de cal e de salitre,
enquanto sobre nós, na cidade, cai o sabre
de esquinas rectas e penumbra,
donde espreitamos o vento que ficou, como um fóssil
gravado em pedra na pedra fóssil.
.
E sabemos, ó, sabemos o recorte talhado de horizontes
ao lusco-fusco cristal púrpura do sol.
.
Bêbados, entramos pelas ruas, acordados,
inquietas aves rasando o espaço em círculos velozes
alargando em círculos de ar as rectas dos telhados
e o presente infinito desolado de galgos e punhais.
.
Na cidade, lembras-te, de mãos dadas, enleados,
percorremos a lídima mansão da puberdade,
o pasmo duma flor abrindo em flor
numa concha derramada de água sobre o mar
e a lídima paisagem do corpo, habitado
de que aromas,
só no tempo do Olimpo conhecidos
antes de alguns humanos serem deuses.
.
Aí vamos, rebentando pelos vincos da memória
a presença sempiterna do teu corpo/musgo antigo,
ou o gosto das avencas verdes de frescura
na vertigem breve da cidade
que volta revivendo de andorinhas
velocíssimas e iguais no abril dos séculos
em largos lagos largos círculos rasando
o horizonte de arestas e corais.
.
Em "5 POETAS DE LAGOS", Vol VI


10 comentários:

  1. Sempre muito bom lê-lo, poeta!

    um abraço
    oa.s

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  2. Que belo poema!
    Dá gosto de ler, parabéns!
    Abraços da Mery*))

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  3. Um poema-quase-testamento dos tempos imemoriais, que conta a fundação do mundo!

    Lindo!

    Beijo, Calado!!

    ;)

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  4. 'As Casas' ou a construção de nós mesmos, desde os alicerces até à cobertura, passando por todas as etapas: alegrias e cansaços, sangue, suor e a seiva da vida.

    Um poema completo!

    Abraço

    Olinda

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  5. Visitei tua casa, olhei pela janela, vi aves sobrevoando os jardins, estive no teu olhar...

    A profundidade do que aqui está escrito é infinita...

    Mas, as vezes nos vem a pergunta que corroí o coração: Porque ainda depois de tudo, de tanto, ainda tem esse espaço sobrando? o que nos falta a completar? e é nesse momento que buscamos aderir as raízes a nós, naquele processos contrario de antes, quando tínhamos o desejo de ir alargando-se, em voos de buscas... Nos damos conta que o aconchego do ninho é fundamental ao conforto da alma. Meu querido, seja teu ninho de luz, povoado por sonhos vividos, nunca por fantasmas, e que tu sinta prazer nos tijolos. Meu abraço com afeto.

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  6. Amigo e Grande Poeta Viera Calado,
    Genial este poema!
    Uma construção, diria, perfeita do que somos, fomos e seremos?
    Interpretei desta forma estas suas palavras tão belas salpicadas de pétalas de flores e musgo antigo.
    Belíssimo.
    Um beijinho.
    Ailime

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  7. Como já é habitual , mais um lindo Poema ! O=brigada pelos momentos de Poesia que me tem proporcionado através deste espaço temático .
    Uma boa semana.

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  8. Querido amigo,
    É Natal...
    Um momento doce e cheio de significado para toda a nossa vida...
    É tempo de repensar valores,de ponderar sobre a vida, e tudo que nos cerca.
    É o momento de deixar nascer essa criança pura, inocente e cheia de esperanças que mora dentro do nosso coração para termos um mundo com muito mais Amor e Paz!!!
    Desejo a você e toda a sua família um Natal abençoado e cheio de alegria.
    FELIZ NATAL!!!!!

    Beijocas de luz e paz...

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  9. Querido amigo,
    Ter asas é viver intensamente as coisas simples e belas do dia a dia.
    Ter asas é ficar em silêncio e ouvir dentro da gente, o Deus que habita cada coração.
    É isso que lhe desejo para o Ano Novo que está chegando...
    Que você tenha asas como as águias.
    Que a lua e as estrelas emprestem um pouco do seu brilho, para iluminar o Novo Ano,
    e que Deus nos dê "Asas de Águia" para voarmos bem alto na construção de um mundo melhor.
    Tenha um Feliz e abençoado Ano Novo ao lado daqueles que você mais ama. Beijocas.

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  10. Muito sucesso com seus livros em 2012, amigo!
    Saúde, paz e muitas alegrias para você!
    Beijos!

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