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Rigorosamente, segundo Bula Papal datada do ano 350 da Era Cristã, o período da Quaresma começa logo a seguir ao Carnaval, um segundo depois da meia-noite de Terça-feira de Entrudo. Mas, entre nós, a determinação do papa Júlio I, há muito tempo que foi relegada para o esquecimento.
Os padres bem podem vestir a paramenta roxa da quadra religiosa, mas ela só adquire o seu verdadeiro sentido e efeito, quando se escoarem os restos festivos da festa pagã do corpo. E isso só virá a acontecer... Quaresma adentro!
E é assim que naquele Entrudo de há cinquenta anos, o último baile de Carnaval haveria de durar até já bem depois do nascer do sol!... Aliás, como era costume naquela Sociedade Recreativa – a mais castiça, a mais genuína da cidade – o Marítimo!
À meia-noite – e certamente não para anunciar o princípio da abstinência, recolhimento e oração –, as luzes da sociedade apagaram-se e acenderam-se três vezes. Era sim, para a saída das máscaras! A partir daí, só era permitida a presença dos sócios, e todos deveriam ter a cara a descoberto, para a continuação do baile.
A porta de entrada foi fechada. Não era para ninguém entrar, mas sim… para ninguém sair! As janelas, essas, tinham as gelosias corridas… muito provavelmente para esconder a claridade do sol, quando ele viesse.
A orquestra “Os Merry Boys”, muito popular na época, encetou a parte final do baile, com marchas, slows e tangos, tão do agrado dos mais velhos, já com a perna cansada.
E a cada nova série, os mancebos iam buscar as moças que se encontravam disponíveis, num cerimonial cortês, de grande galhardia e leveza.
Depois havia de tudo: o puro prazer da dança, ou as promessas de amor, a volúpia disfarçada e a luxúria possível a coberto do tango ou dos slows, sob o olhar atento das mães e avós que se sentavam ao redor do recinto, a espreitar qualquer indício de rebaldaria.
A noite avançava sem ninguém dar por isso. Percebia-se, sim, o cansaço que se via nos rostos, e a humidade que pairava no ar e se condensava nas vidraças, misturada com o aroma ácido do bom azeite desses tempos, a fritar postas de moreia, no bufete. Os homens tinham posto de lado o casaco e aberto o colarinho da inevitável gravata. As camisas colavam-se ao suor dos corpos.
Eram quase seis da manhã, quando começou o baile mandado, mandado a preceito por um mandador de ocasião, que ensaiou as primeiras quadras, ao som da música, que começava a ameaçar tornar-se frenética!
– Vai de roda! Vai de roda, sem parar!
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Dá-lhe um toque mais acima
dá-lhe um toque mais abaixo
dá-me a tua pintassilga
pra brincar com o meu cartaxo!
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Esta noite toda a noite
uma menina e mais eu
coitadinha não sabia
todo o trabalho foi meu!
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Uma velha muita velha
foi mijar ao rocio
deu-lhe o vento na lòlinha...
até mijou de assobio!
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E foi então que alguém gritou:
– O corridinho!... Vai tudo dançar o corridinho!
Mesmo as velhas saltaram dos lugares e algumas foram buscar os já meio-bêbados maridos que bebiam copos de vinho tinto e medronhos, no bufete!
Na sala de baile, os pares rodopiavam, ensaiando os passos, as "escovinhas" e as correduras próprias da tradição e dos floreados do acordéon. Multiplicavam-se os encontrões e as pisadelas dos menos lestos. A água de condensação começou a cair do tecto, em grossas gotas. Mas a pura alegria voltava aqueles rostos cansados. Festa é festa! E só no ano seguinte haveria outra igual.
Por fim, ao fim dum tempo, os pares foram rareando, esgotadas as forças dos mais velhos. Mas os resistentes não davam mostras de abrandar e muito menos desistir.
– Siga o baile!... – ouvia-se com frequência.
Até que, umas boas duas horas depois de ter começado a sucessão interminável de corridinhos, uns a seguir aos outros, o presidente da colectividade subiu ao palco, mal podendo respirar, e anunciou em voz grave, mas contrafeita e entristecida.
– Prezados consócios!... O baile tem de terminar. São quase nove e meia da manhã!...
E, após uma pequena pausa para recuperar o bafo, rematou, ofegante, suado até à medula:
– Mai logo há matinè... às quatro da tarde!...
Caro Vieira Calado
ResponderEliminarAdorei este seu texto.
Dançar até o sal raiar, com um cheirinho a pecado por ser já Quaresma...
O baile 'mandado' e o 'mandador' trouxeram-me memórias do meu pai que falava nesses bailes e lembro-me de algumas palavras, quando ele os descrevia, que me soam assim:
en avant quatre! deixem a dama brincar agora...:))
Um bom fim de semana.
Abraços
Olinda
Grande escritor Vieira Calado,
ResponderEliminarQue delícia este seu texto na descrição perfeita do baile antes da Quaresma.
Li-o de um fôlego e foi como se estivesse a acompanhar ao vivo todo o encantamento desses bailes de há alguns anos atrás.
Julgo crer que as pessoas se divertiam mais nessa época.
Um grande beijinho.
Boa semana.
Ailime
Querido amigo, esses eram realmente bailes de carnaval, onde havia diversão e brincadeiras, assim contavam meus pais também. Acabavam na madrugada da quarta feira, aqui no Brasil o carnaval está ativo até agora em alguns estados e estamos na quaresma. Existe uma linha muito tênue entre o sagrado e o profano. Tenha um excelente final de semana. Bjs
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