AS CASAS
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Na cidade resvalamos pela lâmina dos dias
o contorno dos passeios antigos, as inscrições
do vento encurralado nos umbrais do tempo.
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Aqui tecemos a teia da luz e da sombra
volúvel, da nossa obediência ao sol,
ao claro/escuro ágil clivagem duma nuvem,
ou a cirros de sono no lilás da tarde:
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transitórios de corpos que são os nossos, hábeis
passageiros, limpos insectos de lábios trans-
lúcidos colados aos vitrais reflectidos para dentro,
onde roçam vestígios de amores idos
rasgados em sangue e esperma – versão a mais antiga
da pólvora/seta a mais veloz da ave –,
submersos de pequenas minúsculas aranhas voando
ao indelével vento dum fio de seda,
a bafejar a pele do corpo antiquíssimo
desde o fumo mais imemorial
de todos os segredos da vida
.
trazidos no eco dos frutos do pólen que veio
de ainda além das montanhas e do mar,
talvez de ainda além donde as estrelas
disparam a cinza cadente na noite acesa
de luz e poeira
com que amassamos os olhos terríveis
dos deuses.
.
Aqui, na cidade, nos multiplicamos de sede e náusea/
de amor e raiva,
no vaivém multicolor bocejo e riso da sombra e luz.
Aqui, sobre o veio da terra,
o ouvido encostado ao polo do seu eixo,
aqui talhámos aparelhámos as nossas pedras,
pedra a pedra,
pedra sobre pedra,
até à configuração solene duma casa.
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E nós mesmos as construímos com as nossas mãos
a régua de cálculo, o prumo, esta forma erecta
e obsessiva
que temos
de nos afirmarmos perante nós mesmos e os outros,
esta forma que temos de desafiar a nossa unipresente
presença e imagem,
única, temporal, para sempre presente do que fomos.
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Nós mesmos as construímos com as nossas mãos
e no entanto,
moldámos de arestas as pedras luminescentes,
planos, cubos, rectas paralelas, arcos estilizados,
colunas gregas,
para iludir o cansaço visual da forma
normal do corpo
onde provisoriamente habitamos,
habituados que estamos a habitar uma casa.
Nós mesmos as construímos com as nossas mãos
pedra a pedra, século a século,
e nelas gravámos os dias
ao feitio das páginas da chuva
a gotejar a chuva, vinda de cima para baixo,
do céu para a terra, onde plantámos pedra a pedra
as nossas casas.
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E elas aí estão, humílimas e graves, vestidas de cal
e de salitre preclaro e efémero.
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Habitaremos o seu refúgio, a penumbra amável
dos seus tectos
o espaço circunscrito dos familiares objectos
o teu corpo de mulher
grávida das noites de frio e cio.
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Por aqui passamos passando vagabundeando os dias
ao encontro do acaso das ruas, do amigo de ocasião,
tremendo a luz no ocaso da sombra e frio.
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Às vezes, na cidade, reconhecemo-nos nos outros
comungamos das suas alegrias mais triviais,
perpassamos pelas ruas rente às casas bailarinas
veladas de brancura e negro no estio da tarde;
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às vezes topamos o torrão da terra
de como quem desce à vida imaginada
subitamente serena de açucenas pregadas sob a tarde
de perfil;
.
às vezes detemo-nos de exílio no próprio movimento
imaginário de partir,
chegando sempre ao mesmo sítio exactíssimo de exílio.
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E voltamos de pétalas depois vestidos e marfim
nos olhos murmurando os amigos
os lugares
as coisas
e as casas que ficaram verticais vestidas de cal e de salitre,
enquanto sobre nós, na cidade, cai o sabre
de esquinas rectas e penumbra,
donde espreitamos o vento que ficou, como um fóssil
gravado em pedra na pedra fóssil.
.
E sabemos, ó, sabemos o recorte talhado de horizontes
ao lusco-fusco cristal púrpura do sol.
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Bêbados, entramos pelas ruas, acordados,
inquietas aves rasando o espaço em círculos velozes
alargando em círculos de ar as rectas dos telhados
e o presente infinito desolado de galgos e punhais.
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Na cidade, lembras-te, de mãos dadas, enleados,
percorremos a lídima mansão da puberdade,
o pasmo duma flor abrindo em flor
numa concha derramada de água sobre o mar
e a lídima paisagem do corpo, habitado
de que aromas,
só no tempo do Olimpo conhecidos
antes de alguns humanos serem deuses.
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Aí vamos, rebentando pelos vincos da memória
a presença sempiterna do teu corpo/musgo antigo,
ou o gosto das avencas verdes de frescura
na vertigem breve da cidade
que volta revivendo de andorinhas
velocíssimas e iguais no abril dos séculos
em largos lagos largos círculos rasando
o horizonte de arestas e corais.
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Em "5 POETAS DE LAGOS", Vol VI